segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Reflexo do passado.



Ontem à tarde, ao atender o chamado do telefone, o passado entrou em minha vida como um furação. Uma voz que me pareceu familiar perguntou por meu nome; identifiquei-me e a pessoa do outro lado da linha disse:
- Eu sou a Sônia, sua amiga de juventude, lembra-se de mim?
- Lógico que me recordo! (éramos amigas inseparáveis)- respondi com um embargo na voz. - Como você está? Faz tantos anos que estamos afastadas!
- Estou com muita saudade de nossos tempos. O motivo desta urgência de lhe falar é que acabo de receber o livro Nilza por Maria, escrito por você. Terminei agora de ler um trecho no qual narra suas aventuras na fazenda recém-comprada por seu pai. Por coincidência, estou morando com meu marido em uma que faz divisa com a que descreve em seu livro.
Fiquei sem saber o que dizer. Meus olhos estavam marejados de lágrimas. Estava quase no ponto de uma crise de choro, quando ela continuou:
- Aquele trecho em que você descreve a estrada de terra que fica na entrada da fazenda, e corta uma mata virgem, continua do mesmo modo, nada foi mudado.
Só então me recompus e perguntei sobre o Quico (Francisco), seu marido, que também era de nosso grupo, e como estavam as outras colegas nossas.
- Não tenho me encontrado com quase nenhuma de nossasamigas. Cada uma tomou seu rumo. Como você;formaram famílias em outras cidades. Algumas faleceram prematuramente.
- Quem faleceu? - perguntei, preocupada com a reposta.
- Lembra-se da Lení? Foi uma das que se foram.
Foi como se tivesse levado um soco no estômago, pois ela era parte integrante de nosso grupinho e jamais havia cogitado a possibilidade de ela não mais estar entre nós.
- E você? Fale-me o que anda fazendo.- perguntei.
-Eu tive duas filhas, que se formaram, casaram-se e moram em Campinas. Atualmente, estou sozinha com o Quico. Sou avó de dois netos de nove anos cada um. Minhas filhas demoraram a se tornarem mães. Há alguns anos, resolvemos lotear a chácara onde morávamos em Ibitinga e a transformamos em um condomínio. Mudamos-nos para cá. Pretendíamos ficar por aqui, somente enquanto construíamos uma casa nova, nos lotes que guardamos, mas acabamos nos apaixonando pela vida da fazenda e resolvemos nos deixar ficar.
Preocupada, perguntei:
- Você não tem receio de morar tão distante da cidade? Na nossa idade é complicado ficar distante de prontos atendimentos.
Ela respondeu:
- Não tenho nenhum receio. Minhas filhas é que não aprovam esta situação, mas a vida aqui é tão tranquila, que estamos adiando enquanto pudermos nossa volta à cidade. Para que elas ficassem calmas, compramos um apartamento em um prédio próximo ao centro da cidade. Quando temos algum problema de saúde, ficamos nele até nos curarmos.
Continuamos nos falando por muito tempo, relembrando nosso tempo de juventude.
Falei sobre meu marido, minha viuvez, meus filhos e netos. Sobre a minha surpresa em me tornar escritora depois dos sessenta anos, sobre os próximos livros que estarão no mercado brevemente, e outras coisas mais.
Ela acabou me trazendo notícias tristes sobre uma amiga, que era mais do que isso, era minha irmã de alma. Eu a amava tanto, que a convidei para ser madrinha de minha filha caçula. O nome dela é Henriqueta.
Era a moça mais bonita da cidade, de uma meiguice que poucas pessoas conseguem ter. Tinha cabelos negros cacheados e os usava sempre soltos sobre os ombros. Lindos olhos negros que brilhavam como se fossem dois holofotes, pois estavam sempre transmitindo paz e alegria. Os rapazes ficavam fascinados com sua beleza, mas nenhum deles jamais conseguiu tomar seu coração.
Sua mãe, dona Luiza, a vestia com muito esmero. Todo fim de semana havia sempre um vestido novo para ela usar.
O tempo passou e eu, atarefada com a criação de meus filhos e os cuidados com meu marido, acabei me afastando da cidade onde passei a melhor parte de minha juventude, com isso perdendo o contacto com pessoas tão queridas.
Nos primeiros dois anos, me hospedava na casa da Neuza, por um ou dois dias, outra amiga muito querida, e aí podia encontrar com todos e colocar as novidades em dia. Principalmente matar as saudades. Aconteceu, porém, que ela acabou se mudando para Marília e nunca mais a vi. Esta amiga era a única que procurava saber de mim quando vinha a Araraquara. Quando não podia passar por minha casa, visitava meus pais e, assim, não nos perdíamos de vista.
Estive em Ibitinga, pela última vez, quando, ao visitar meus parentes na cidade de Itápolis, me hospedei por um dia na casa de Dona Luiza, mãe de Henriqueta. Achei por bem levar minha filha para que ela a visse, pois nunca esteve em minha casa fazendo uma visita à afilhada.
Depois disto, só voltei por ocasião do enterro do pai da Neuza, um italiano muito querido de todos os ibitinguenses. Dona Anita, depois da morte de seu marido, foi morar com sua filha.
Como ninguém me procurasse aqui em Araraquara, achei por bem não mais retornar a Ibitinga. Porque só eu deveria procurar minhas amigas, se ninguém se incomodava em saber notícias minhas?
Esta mágoa acabou fazendo com que eu perdesse o contacto com as amigas de minha adolescência.
Somente ao atender o telefonema da Sônia, percebi o quão errada estive durante todo este tempo.
Ela me contou que Henriqueta não se casou e que, atualmente, está completamente só. Seus pais faleceram. Seu único irmão também morreu muito jovem.
Hoje, disse Sônia, ela mora na antiga casa que pertenceu a sua avó Maria, uma velhinha italiana que passava os dias tricotando para seus netos. Eu a amava como se fosse também a minha avó.
Durante o período das férias, sua casa ficava repleta de parentes, que vinham de São Paulo, para passar as férias no interior. Nestes dias, ela virava cozinheira de todos: passava os dias fazendo pães, massa de macarrão, muitos doces e tortas, para agradar o paladar de todos.
O quintal de sua casa era enorme, com muitas árvores frutíferas. Tinha também uma grande horta, que ficava próxima a um riacho, que passava nos fundos da casa. As crianças adoravam brincar de desbravadores nele.
Durante as férias, sua casa se transformava num grande jardim florido, cheio de jovens e crianças, transbordando alegria e vivacidade. Adorava me juntar a eles; era aceita por todos como se fizesse parte da família.
Por esse motivo, senti muito quando soube da morte de Dona Maria. Fiquei muito ofendida por não terem se lembrado de me avisar que ela havia deixado este mundo.
Depois disso, não mais procurei ter notícias de ninguém. Como eles também se esqueceram de mim, tudo acabou ficando perdido no passado.
Ao soar a campainha do telefone nesta tarde de domingo, foi como se uma represa houvesse estourado e todo o passado jorrasse sobre mim sem que eu tivesse meios de detê-lo.
Estou planejando fazer uma reunião com todos que ainda estão vivos, para que possamos reviver as boas passagens que tivemos quando éramos garotos.
Vou conversar com a Sônia para ver se conseguimos planejar, juntas, esse encontro.
Vai ser difícil descobrir onde a maioria se encontra, mas, com paciência e determinação, estou certa que conseguiremos.
Sei que não vou poder reparar os erros passados, mas quero fazer o que deveria ter sido feito há no mínimo quarenta anos atrás!

A autora: Maria (Nilza) de Campos Lepre.

domingo, 2 de dezembro de 2012

A menina que amava Noel.




Em uma pequena cidade do interior do estado de São Paulo, vivia uma menina chamada Nina.
Apesar de sua família ser muito pobre, estava sempre alegre e feliz. Encontrava a beleza em tudo que via, mesmo nas pequenas coisas. Estava sempre com um sorriso nos lábios. Quando alguma coisa acontecia de ruim, abria o peito e cantava com sua voz infantil, mas muito afinada, músicas alegres, que acabavam contagiando a todos ao seu redor.
Quando seus irmãos reclamavam a falta de brinquedos, ela sempre achava algum modo de fazê-los felizes. Pegava uma bola feita de meias velhas e jogava futebol ou bola queimada com eles. Outras vezes, achava algumas pedrinhas para atirarem na água do riacho.
Se por acaso ficavam tristes, chamava a atenção deles para o lindo canto de algum pássaro que se encontrava por perto, e ficavam tentando imitar o som emitido por ele por algum tempo. Quando cansavam desta brincadeira, mostrava a eles a beleza de uma flor que estava desabrochando, ou simplesmente o trabalho de uma abelha em busca do néctar para sua sobrevivência.
Após uma chuva, se apontasse no céu um arco-íris, aproveitava para criar várias histórias sobre ele. Muitas vezes, simplesmente repetia alguns contos que sua mãe lhe havia contado ou lido enquanto seu pai ainda era vivo. Neste tempo, a vida era bem diferente: ela tinha mais tempo para se dedicar à família e aos filhos.
Perdera seu pai há dois anos e o mundo ao qual estava acostumada caiu por terra de uma hora a outra. Sua mãe não tinha nenhum estudo; trabalhava como faxineira em casa de pessoas ricas, mas, ao ficar viúva, com três filhos pequenos para criar, ninguém mais a contratou. Antes podia pagar a uma amiga para tomar conta das crianças enquanto trabalhava. Com a falta do marido, que faleceu sem nunca ter contribuído para uma aposentadoria, sua renda caiu a zero. Para piorar, nesta pequena cidade não há creche municipal; e as que existem são particulares, portanto, fora de cogitação.
A situação da família ficou tão grave que a mãe passou a catar lixo nas ruas. Algumas pessoas, para ajudá-la, passaram a guardar jornais e outros objetos recicláveis, que ela recolhe todo começo de semana. Nos finais de semana dá uma passada pelas lojas comerciais para resgatar algumas caixas e alguns invólucros de geladeiras, televisores e outros produtos.
Faz algumas paradas em bares que guardam latinhas de refrigerantes, cerveja e caixas vazias. Alguns donos de bom coração chamam as crianças, que sempre a acompanham, para presenteá-los com algumas balas ou biscoitos. O que consegue arrecadar com a venda de tudo que arrecada, mal dá para a comida dos filhos.
Seu marido deixou como herança um casebre e, também, a pequena carroça com a qual ele carregava suas ferramentas de jardinagem e que, agora, serve a ela para carregar o material recolhido. Ele era o jardineiro de várias casas da cidade. Com o que ganhava, dava para viverem com relativa fartura.
A cabana fica às margens do córrego que margeia a cidade. Para lá se mudou com seus três filhos.
Todo o dia acorda cedo e prepara o lanche das crianças; geralmente é uma xícara de chá ou café e um pedaço de pão seco. Seu coração fica apertado por não poder servir nem sequer um gole de leite aos pequenos.
Nina é a mais velha das crianças. Neste ano, vai completar seis anos. No próximo, começará a frequentar a escola pública. Todo dia, ao acordar, sai da cama cantando e comentando a beleza do dia que se abre à sua frente, mesmo que o tempo esteja chuvoso ou frio. A alegria que sente em viver é contagiante. Assim, consegue desanuviar um pouco as sombras da vida de todos nesta pequena casa.
Quando a fome aperta, vai com os pequenos até a casa de alguma vizinha onde há alguma arvore frutífera e pede, com educação, para colher algumas frutas para seus irmãozinhos. Sempre é recebida com carinho por todos.
O Natal está chegando. Nina, como nos dois últimos anos, pediu à sua mãe que escrevesse uma cartinha para o Bom Velhinho. Tudo que ela mais desejava foi escrito novamente. Só que, desta vez, tinha a certeza que conseguiria, pois Noel desta vez iria atender seu pedido. A certeza que sente se deve à conversa que teve com ele há dois dias. Ao passar pela rua do comércio, encontrou o Bom Velhinho e relatou a ele tudo o que mais desejava nesta vida. Noel garantiu a ela que receberiatudo que havia encomendado.
Pegou a cartinha recém-escrita e foi em desabalada carreira até o prédio dos correios, saltando e cantando alegremente. Ao chegar, enfiou a cartinha em uma urna que estava colocada logo na entrada do prédio. Gritou a plenos pulmões:
- Este vai ser o melhor Natal de minha vida.
Depois, saiu dançando e cantando pelas ruas da cidade, contagiando a todos com sua alegria.
Quando contou à sua mãe que iria esperar pelo Papai Noel durante toda noite de Natal, ela, muito preocupada, tentou dissuadi-la, dizendo:
- Filha, nem todos recebem presentes neste dia. Ele está muito idoso e, se cansa com facilidade. Muitas vezes, acaba se esquecendo de alguém. Você tem que entender que com a idade avançada não consegue fazer tudo o que fazia quando era jovem.
Nada do que sua mãe ou outras pessoas dissessem conseguia dissuadi-la da meta que havia traçado.
Continuou cantando e dizendo a todos sobre o grande amor que sente pelo velho Noel. Toda noite, depois de rezar a papai do céu, mantém um dialogo com ele e termina sempre pedindo que não se esqueça de seu pedido:
- O que está escrito na carta é a coisa mais importante que existe neste mundo, não falhe comigo. Amo muito você. Agora é como se fosse meu pai. Beijos, beijos.
Os dias passam. Chega o Natal.
Ela, como havia prometido, sentou-se em uma cadeira na pequena sala e ficou à espera. Mas, acabou pegando no sono mesmo sem ter desejado isso. Acordou no dia seguinte, com um monte de caixas espalhadas pela sala: eram muitos pacotes de presentes. Ficou maravilhada, sua boca escancarou de emoção. Sem nem tocar em nenhum deles, correu a acordar seus irmãos e sua mãe:
- Acordem! É Natal! O menino Jesus já nasceu e Papai Noel deixou um montão de presentes para vocês. Venham!
As crianças partiram como um jato para a sala e começaram a estraçalhar as caixas de tão excitados se encontravam. Foram encontrando carrinhos, caminhões, jogos e mais uma série de brinquedos.
Nina se colocou na porta de saída da casa, de onde podia ficar apreciando a alegria das crianças. Mas nem por um segundo cogitou de pegar algum dos embrulhos para si. De seu rosto, irradiava uma luz que parecia ser divina. É como se tivesse ganhado o melhor dos presentes existentes neste mundo. Ficou ali apreciando aquela cena: a alegria que reinava naquele instante naquele casebre; pobre sim, mas cheio de amor, e muita graça divina.
Nina se encontrava tão distraída, que levou um susto, quando alguém bateu à porta. Ela a abriu e qual não foi a sua surpresa ao ver o mesmo Papai Noel que havia encontrado no centro da cidade, portando uma bicicleta. Ela logo foi dizendo:
- Noel, não foi isso que eu pedi. Tudo que sonhei já está aqui, dentro deste casebre. Veja! O senhor deu a eles os brinquedos que sempre sonharam. Agora, se encontram na maior felicidade. Agradeço ter realizado meu sonho.
Noel respondeu:
- Não se preocupe. Este, eu resolvi trazer pessoalmente, visto que não havia pedido nada para você mesma. Venha aqui fora. Quero te mostrar uma coisa.
A menina saiu meio ressabiada, quando se deparou com um burrinho, com um imenso laçarote vermelho preso a seu corpo.
- Este é para sua mãe, para que ela não tenha mais que puxar a pequena carroça.
Mesmo sem agradecer, entrou pela porta como um furacão e trouxe sua mãe pela mão para receber seu presente. A mulher ficou sem palavras. Só sabia chorar.
Nina pulou no pescoço do velhinho e quase o sufocou de tão apertado foi o abraço que deu nele.
- Viu, mamãe! Eu não falei que ele existia? Todo mundo duvidou, mas só eu acreditei. Não adiantou de nada o que todos falaram eu sempre tive a certeza que seria atendida.
Depois da partida de Noel, Nina saiu pela cidade, alardeando a todos o grande feito. Pedalou em sua linda bicicleta, que, certamente, seria compartilhada com seus irmãos, cantando lindos cânticos de Natal.
                                     Fim
A autora: Maria (Nilza) de Campos Lepre.