Ontem à tarde, ao
atender o chamado do telefone, o passado entrou em minha vida como um furação.
Uma voz que me pareceu familiar perguntou por meu nome; identifiquei-me
e a pessoa do outro lado da linha disse:
- Eu sou a Sônia, sua
amiga de juventude, lembra-se de mim?
- Lógico que me recordo!
(éramos amigas inseparáveis)- respondi com um embargo
na voz. - Como você está? Faz tantos anos que estamos
afastadas!
- Estou com muita
saudade de nossos tempos. O motivo desta urgência de lhe falar é
que acabo de receber o livro Nilza por
Maria, escrito por você. Terminei agora de ler um trecho no qual narra suas
aventuras na fazenda recém-comprada por seu pai. Por
coincidência, estou morando com meu marido em
uma que faz divisa com a que descreve em seu livro.
Fiquei sem saber o que
dizer. Meus olhos estavam marejados de lágrimas. Estava
quase no ponto de uma crise de choro, quando ela continuou:
- Aquele trecho em que
você descreve a estrada de terra que fica na entrada da fazenda, e corta
uma mata virgem, continua do mesmo modo, nada foi mudado.
Só então me recompus e
perguntei sobre o Quico (Francisco), seu marido, que também
era de nosso grupo, e como estavam as outras colegas nossas.
- Não tenho me
encontrado com quase nenhuma de nossasamigas. Cada uma tomou
seu rumo. Como você;formaram famílias em outras cidades. Algumas faleceram
prematuramente.
- Quem faleceu? -
perguntei, preocupada com a reposta.
- Lembra-se da Lení?
Foi uma das que se foram.
Foi como se tivesse
levado um soco no estômago, pois ela era parte integrante de nosso grupinho e
jamais havia cogitado a possibilidade de ela não mais estar entre nós.
- E você? Fale-me
o que anda fazendo.- perguntei.
-Eu tive duas filhas,
que se formaram, casaram-se e moram em Campinas. Atualmente, estou sozinha com
o Quico. Sou avó de dois netos de nove anos cada um. Minhas filhas demoraram a
se tornarem mães. Há alguns anos, resolvemos lotear a chácara
onde morávamos em Ibitinga e a transformamos em um condomínio.
Mudamos-nos para cá. Pretendíamos ficar por aqui, somente enquanto construíamos
uma casa nova, nos lotes que guardamos, mas acabamos nos apaixonando pela vida
da fazenda e resolvemos nos deixar ficar.
Preocupada,
perguntei:
- Você não tem receio
de morar tão distante da cidade? Na nossa idade é complicado ficar distante de
prontos atendimentos.
Ela respondeu:
- Não tenho nenhum
receio. Minhas filhas é que não aprovam esta situação, mas a
vida aqui é tão tranquila, que estamos adiando enquanto pudermos nossa volta à
cidade. Para que elas ficassem calmas, compramos um apartamento em um prédio
próximo ao centro da cidade. Quando temos algum problema de saúde,
ficamos nele até nos curarmos.
Continuamos nos falando
por muito tempo, relembrando nosso tempo de juventude.
Falei sobre meu marido,
minha viuvez, meus filhos e netos. Sobre
a minha surpresa em me tornar escritora depois dos sessenta anos, sobre os
próximos livros que estarão no mercado brevemente, e outras coisas mais.
Ela acabou me trazendo
notícias tristes sobre uma amiga, que era mais do que isso, era minha irmã de
alma. Eu a amava tanto, que a convidei para ser madrinha de minha filha caçula.
O nome dela é Henriqueta.
Era a moça mais bonita
da cidade, de uma meiguice que poucas pessoas conseguem ter.
Tinha cabelos negros cacheados e os usava sempre soltos sobre
os ombros. Lindos olhos negros que brilhavam como se fossem dois holofotes,
pois estavam sempre transmitindo paz e alegria. Os rapazes ficavam fascinados
com sua beleza, mas nenhum deles jamais conseguiu tomar seu coração.
Sua mãe,
dona Luiza, a vestia com muito esmero. Todo
fim de semana havia sempre um vestido novo para ela usar.
O tempo passou e eu,
atarefada com a criação de meus filhos e os cuidados com meu
marido, acabei me afastando da cidade onde passei a melhor parte de minha
juventude, com isso perdendo o contacto com pessoas tão
queridas.
Nos primeiros dois
anos, me hospedava na casa da Neuza, por um ou dois dias, outra amiga muito querida,
e aí podia encontrar com todos e colocar as novidades em dia. Principalmente
matar as saudades. Aconteceu, porém, que ela acabou se mudando para Marília e
nunca mais a vi. Esta amiga era a única que procurava saber de mim quando vinha
a Araraquara. Quando não podia passar por minha casa, visitava
meus pais e, assim, não nos perdíamos de
vista.
Estive em Ibitinga,
pela última vez, quando, ao visitar meus parentes na cidade de
Itápolis, me hospedei por um dia na casa de Dona Luiza, mãe de
Henriqueta. Achei por bem levar minha filha para que ela a visse, pois nunca
esteve em minha casa fazendo uma visita à afilhada.
Depois disto,
só voltei por ocasião do enterro do pai da Neuza, um italiano muito querido de
todos os ibitinguenses. Dona Anita, depois da
morte de seu marido, foi morar com sua filha.
Como ninguém me
procurasse aqui em Araraquara, achei por bem não mais retornar a Ibitinga.
Porque só eu deveria procurar minhas amigas, se ninguém se incomodava em saber
notícias minhas?
Esta mágoa acabou
fazendo com que eu perdesse o contacto com as amigas de minha adolescência.
Somente ao
atender o telefonema da Sônia, percebi o quão errada estive durante todo este
tempo.
Ela me contou que
Henriqueta não se casou e que, atualmente,
está completamente só. Seus pais faleceram. Seu único
irmão também morreu muito jovem.
Hoje,
disse Sônia, ela mora na antiga casa que pertenceu a sua avó Maria, uma
velhinha italiana que passava os dias tricotando para seus netos. Eu a amava
como se fosse também a minha avó.
Durante o período das
férias, sua casa ficava repleta de parentes, que vinham de São
Paulo, para passar as férias no interior. Nestes dias, ela
virava cozinheira de todos: passava os dias fazendo pães,
massa de macarrão, muitos doces e tortas, para agradar o paladar de todos.
O quintal de sua casa
era enorme, com muitas árvores frutíferas. Tinha também uma grande horta, que
ficava próxima a um riacho, que passava nos fundos da casa. As crianças
adoravam brincar de desbravadores nele.
Durante as férias,
sua casa se transformava num grande jardim florido, cheio de
jovens e crianças, transbordando alegria e vivacidade. Adorava
me juntar a eles; era aceita por todos como se fizesse parte
da família.
Por esse motivo,
senti muito quando soube da morte de Dona Maria. Fiquei muito ofendida por não
terem se lembrado de me avisar que ela havia deixado este
mundo.
Depois disso, não mais
procurei ter notícias de ninguém. Como eles também se
esqueceram de mim, tudo acabou ficando perdido no passado.
Ao soar a campainha do
telefone nesta tarde de domingo, foi como se uma represa houvesse estourado e
todo o passado jorrasse sobre mim sem que eu tivesse meios de detê-lo.
Estou planejando fazer
uma reunião com todos que ainda estão vivos, para que possamos reviver as boas
passagens que tivemos quando éramos garotos.
Vou conversar com a
Sônia para ver se conseguimos planejar, juntas, esse encontro.
Vai ser difícil
descobrir onde a maioria se encontra, mas, com paciência e
determinação, estou certa que conseguiremos.
Sei que não vou poder
reparar os erros passados, mas quero fazer o que deveria ter sido feito há no
mínimo quarenta anos atrás!
A
autora: Maria (Nilza) de Campos Lepre.